Vieira do Minho há cem anos. Na obra-prima do Padre Alves Vieira, Vieira do Minho – Notícia Histórica e Descritiva (1923-1925), na celebração do 1.º centenário da sua publicação.

Capítulo VII (I Parte) – USOS E COSTUMES – II

[transcrição do áudio]

Depois de pintar painel do «lar vieirense» (pp. 158-176), evocada na edição anterior deste Jornal, o Pe Alves Vieira prossegue, no mesmo Capítulo VII da monografia, a representação de outros denominados «Usos e costumes», que é este o título e o tema do capítulo em apreço. Fala da figura incontornável do padre ou «o bom pastor» (pp. 176-180), dos «Batizados» (pp. 180-183), dos «Casamentos» (pp. 184-186), dos «Enterros» (pp. 186-196), da «Grande Festa do Natal» (pp. 196-203), da «Festa dos Reis» (pp. 204-212), do «Entrudo» (pp. 212.215), do «Dia de Páscoa» (pp. 215-217), das «Romarias» (pp. 218- 224), das «Atrancadilhas»  (p. 224), dos «Trajes» (pp. 224-225), da tradição de «Pedir os Reis» (p. 225), das «Filhós ou Filhoses» (p. 225), do «Bragal» (p 225).

Como nos pareceu pertinente pôr em foco o quadro do «lar vieirense», igualmente nos pareceu com interesse destacar o quadro das «Romarias», a que dedica cerca de meia dúzia de páginas deste capítulo da obra (pp. 218-224).

As romarias

“As romarias são um oásis no meio das canseiras da vida. Todos vão lá para sentir alívio e conforto. Só há uma capital diferença na maneira de entender e de buscar esse alívio; alguns buscam-no à sombra dos altares; outros à sombra… dos ramos de loureiro… […]

Em Vieira, a maioria das romarias são em honra de Nossa Senhora; e quem mais indicada que Ela, para balsamizar dores e cicatrizar feridas? […]

A romaria faz parte dos costumes regionais. É um número que nunca falha no programa do nosso campónio. Há os que vão à festa por devoção; há-os que vão por bem parecer; há-os que vão para mal fazer.

Na véspera da romaria – já se sabe – os importunos zabumbas ecoam por aqueles vales e quebradas, os foguetes estralejam, os morteiros atroam os ares. O rapazio folga e todo se delicia naquelas expansões que não são de todos os dias; os velhos também se sentem remoçar, lembrando anos longínquos e antegozando mais uma vez os suaves encantos da romaria. Mais uma vez e… talvez seja a última…

Chegando o dia, todos vestem a melhor roupa; e preparado o farnel, lá se vão a caminho da serra, onde se ergue o santuário dos seus amores.

Pelo caminho, quantas e quantas vezes se nos confrange o ânimo, olhando para esses pobres de pedir, que em soluçantes gritos amostram as nossas chagas pustulentas e pedem a esmola da nossa caridade! […]

Podemos ampliar a todas as romarias o que do Domingo disse Alexandre Herculano:

«É então que o Catolicismo lhe oferece as pompas das suas solenidades; o templo iluminado, os cânticos dos sacerdotes, as harmonias do órgão, o espetáculo brilhante das vestes sacerdotais, e dos adornos do altar, os ramalhetes povoando os degraus do santuário ou juncando o pavimento, o incenso embalsamando a atmosfera

E o nosso bom povo entra na igreja, prostra-se em humilde oração, cumpre as suas promessas, dá largas ao seu piedoso afeto. E de muitas almas ulceradas e varadas de dor, se pode dizer o que disse Herculano de uma pobre vela:

«Na procela de terrores que a cercam, começa a bruxulear uma luz de esperança:  espera, porque crê na possibilidade da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque no meio das lágrimas e das rezas, ela pensa, lá consigo, que aquela imagem trouxe já muitas consolações a seus pais, a ela mesma e a toda a família, e que a Virgem Santíssima há de acudir-lhe.

O homem que ora – confirma Castilho – consola-se de muitas penas, adormenta em si muitos ódios, afaz-se pelo pensamento aos sentimentos da caridade; e experimenta deleites, que nem a pobreza, nem os trabalhos, nem o cárcere, nem o desterro, nem as doenças, nem o desprezo, nem a orfandade lhe poderiam arrebatar

Acabada a festa da igreja, o povo sai cá para fora. E então a festa torna-se quase sensual, e de todo pagã. Já ninguém se lembra da Nossa Senhora nem dos Santos. É o lado triste das romarias, mas nem por isso deixa de ser um facto.

«Como tudo isto – acrescenta Herculano ao que atrás fica citado – é para as multidões, o culto transborda do estreito recinto e derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos, em procissões, em círios, em romarias, e o povo flutua, folga, reza, tripudia, esquece-se dos seus destinos de miséria e trabalho, ama a religião que o consola, e, voltando às habituais fadigas, leva para o meio delas a saudade do dia santo e as recordações afetuosas da Igreja.»

Não faremos referência especial às procissões, nem às merendas comidas alegremente à sombra das carvalheiras; mas não finalizaremos sem aludir à péssima costumeira dos barulhos que alguns armam em dias de romaria. O grande e incomparável poeta de Belinho (Esposende) tem um lindo soneto em que figura «Tio Saudade» cujo «coração pula», «porque lhe roubaram o seu par». O «Tio Saudade» diz:

«Eh! meu velho amigo, ó cajado!»

Salto atrás, à frente e ao lado…

Varri de feito o arraial.

Ficou de pé a capela

E a Santa. Entrei; e, vai ela,

Diz-me assim: «Fizeste mal…»

Os nossos barulhos em romarias não se filiam em questões de amores. Muitos levam para ali os seus velhos ódios e antagonismos, e no final da festa, esquentados pelo álcool, entram de manejar os varapaus, e quantas festas rematam em cenas de luto… Péssimo costume, que não há maneira de se extirpar… Alguns vão à romaria só para fazer mal.

A maior romaria destes lados é o S. Bento da Porta Aberta.

De Vieira vai lá quase tudo; mas além disso, Vieira é ponto forçado de passagem para gente de muitos concelhos do Minho e até de Trás-os-Montes. Cabeceiras de Basto, Fafe, Celorico de Basto, Mondim, Ribeira de Pena, Vila Pouca de Aguiar dão enorme contingente, para a célebre romaria; e essa gente passa toda por Vieira. Então o nosso povo prepara-se para a receber bizarramente. Em Brancelhe montam-se tabernas ao ar livre, armam-se barracas, põem-se mesas com refrescos e frutas. Os que vêm de mais longe fazem estação em Brancelhe, dormindo onde podem; e no dia seguinte, muito cedinho, já remoçados, abalam para S. Bento.

E ali, que grande entusiasmo, que vibrantes manifestações de fé! Quiséramos pintar essa romaria por miúdo, falar de certos usos em vigor; mas falece-nos o espaço, e, por outro lado, neste livro só queremos falar do Vieira administrativo, e Rio Caldo fica fora da nossa alçada.”

Fotografias: Feira da Ladra, Vieira do Minho / Festa em honra de Nossa Senhora da Lapa, Soutelo.