Vieira do Minho há 100 anos. Na obra-prima do Padre Alves Vieira, Vieira do Minho – Notícia Histórica e Descritiva (1923-1925), na celebração do 1.º centenário da sua publicação.
Um projeto CAVA, com fotografias atuais de Miguel Proença. Apoios: Instituto Português do Desporto e Juventude, O Jornal de Vieira e Rádio Alto Ave.
Transcrição:
Capítulo VII (I Parte) – USOS E COSTUMES – I
À medida que nos adentramos na releitura da obra-prima do nosso historiador vieirense, Pe. Alves Vieira, mais nos convencemos do seu génio literário e do seu acendrado amor às coisas e às gentes da terra e do povo de Vieira, dos seus “dons naturais” e das suas “virtudes morais” (p. 156).
No Capítulo VII, longo de 70 páginas (pp. 155-225), o autor faz passar perante o olhar do leitor, como que num palco ou num cenário animados, a vida das gerações vieirenses que nesse palco e cenário se cruzaram e conviveram ao longo da maior parte do século XX.
Este capítulo dos «Usos e Costumes» ou das mentalidades e cultura do povo vieirense afigura-se-nos como um políptico, composto por uns catorze painéis, sendo o primeiro o da imagem do antigo “lar vieirense” (pp. 158-176)” ou célula base da sociedade, isto é, da família. É este, pois, o primeiro painel pintado pelo “radiologista” histórico de Vieira do Pinho.
A releitura deste capítulo da História de Vieira antiga suscita-nos duas reflexões, que poderiam ser também dois desafios ou duas propostas, e que, mais concretamente se prendem com a imagem do «lar vieirense» que o Pe. Alves Vieira deixou para os seus leitores: a necessidade de um Museu da Memória ou Museu Etnográfico do povo de Vieira, por um lado, e, no que concerne à espiritualidade do lar e à presença massiva nele do Telemóvel, se lhe fosse dado fazer uma segunda edição da sua obra, como foi seu desejo, cem anos após a primeira, talvez aconselhasse os seus utilizadores a clicar a palavra ´«Breviário» e a rezar em uníssono, não já à luz da «candeia», mas do« écran do Telemóvel», a hora de «Vésperas» ou de «Completas», o que, talvez, não fosse uma vã utopia, mas uma luminosa prática, capaz de reunir a família tresmalhada, nestes tempos novos, mas sombrios, sob a ameaça do «monstro da guerra”.
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Com voz de Filipe de Oliveira…
O lar vieirense.
“Pelo lado material, o lar da nossa terra oferece aspetos dignos de um carinhoso estudo. Em geral não há fogões, não há chaminés, não há água encanada, não há azulejos pelas paredes, nem pavimento encerado. É tido de uma simplicidade e de uma modéstia de admirar.
Ao centro da cozinha, fica a lareira, que é onde se faz o fogo para preparar as comidas. Os utensílios e aprestos de uso permanente, que nunca se tiram da lareira, são: uma caldeira grande de cobre, pendente do teto por uma longa cremalheira de ferro, e que serve para aquecer água para os cevados; uma trempe de ferro que se põe da parte de trás da lareira e que serve para segurar os cavacos e lenha que deve arder. […]
Afora estes dois objetos, há outros que se tiram e põem consoante as necessidades: os potes de ferro, os púcaros de barro, as chocolateiras de folha, etc.
Também não falta no lar rico, nem mesmo no pobre, a clássica candeia para petróleo ou azeite. […]
Não há casa que não disponha de um ou mais escanos, havendo-os de todos os tamanhos e de variadíssimos feitios. […]
Nas boas cozinhas, há sempre, por detrás do lar, ou a um canto, a torreira. […]
Louceiro, eis outra parte indispensável da cozinha rústica vieirense. […]
Outra dependência da boa cozinha são os bons armários. […]
Que não se esqueça a maceira ou masseira. […] É complemento da masseira a peneira para peneirar a farinha e a gamela para padejar a massa. […]
O forno é outra coisa indispensável. […] Cá na nossa terra poucas casas deixarão de ter forno; algumas têm dois e três. Só em Campos é que se abre exceção, por haver um forno só para a povoação toda.
Apensos ao forno: o varredoiro, que é um pano velho atado na ponta de um pau, e que serve para varrer e limpar o forno antes de meter o pão; a ferrelha, uma espécie de pá quadrada de ferro, espetada num cabo duro e resistente que serve para meter o pão e depois tirar as boroas do forno; e já ia esquecendo o gancho, que é um ferro recurvado em forma de meia lua, e por igual espetado num cabo, que serve para, quando o forno está quente, puxar as brasas para a boca do mesmo forno, e começar a obra e limpeza que depois é completada pelo varredoiro. […]
Este era verdadeiramente o lar vieirense de há vinte anos. Então, acabada a labuta diária, comida a frugal ceia, o chefe da família deitava as graças e a oração saia calma e comovida dos lábios de todos. […]
Depois de pensar na alma, e de rezar, a nossa gente de aldeia, delicia-se, sobretudo nas longas noites de inverno, a fazer serão. […]
Oh! que belo quadro esse! A velhinha, em quem os Janeiros pesam mais que os cabelos, não quer ficar atrás da neta rosada, de cabelos encaracolados e loiros; e pegando nas estrigas de linho ou nos manelos de lã cardada, enrola-os na roca, prende-os com a correia puída dos anos, mete a roca à cinta e é de ver como a velhinha fia e se desembaraça… […]
O lar, à luz da experiência, deve ser o centro da vida da família”.
Nota – O Pe. Alves Vieira, embora não praticasse o género poético, alimentava de poesia as suas meditações e os seus escritos. O seu poeta predileto, que abundantemente convoca nas suas obras, é António Correia de Oliveira, do qual transcreve, neste capítulo, estes versos:
No lar, o fogo é como um pensamento
De Deus, chamando os homens a seu lado;
Ei-los, em volta, o rosto iluminado:
Sombras eternas résteas d’um momento.
Lareira santa! Derramas
Sol e amor. Bendita lenha,
Deus te acrescente e mantenha
Funda raiz, verdes ramas.
Fotografias: Casa da Gaiteira, Ruivães.