Na obra-prima do Padre Alves Vieira, Vieira do Minho – Notícia Histórica e Descritiva (1923-1925), na celebração do 1.º centenário da sua publicação. Em destaque, o capítulo VI (primeira parte).
Capítulo VI (I Parte) – A NOSSA SERRA
Depois de retratar, no capítulo anterior, «O Nosso Rio», o genial biógrafo do nosso concelho retrata magistralmente neste «A Nossa Serra», identificada como «fonte do Ave» e «espinha dorsal do concelho». Pela leitura integral das treze páginas deste capítulo (pp. 141- 153), ficamos a saber o que foi a Serra da Cabreira, – antes da depredação dos seus recursos naturais e das «queimadas» ou «incêndios» e enquanto palco de atividades como as «montarias», com os seus rigorosos e cuidados rituais, com os seus capatazes («velas») e os seus «caudéis» – e aquilo em que se transformou por imprevidência e negligência generalizadas.
Neste capítulo, o Pe. Alves Vieira faz também referência ao património construído na Serra – os célebres «fojos», as «casas florestais», os «estradões» – e inclui um eloquente documento da autoria do insigne vieirense, Dr. Jaime de Abreu, que muito importa reler e sobre ele refletir.
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“A Cabreira, que se estende numa longa cortina de colinas, outeiros e planaltos, em torno de Vieira, é por sem dúvida uma das melhores garantias do nosso futuro.
[…] Em tempos idos a urze avançava até perto das povoações; e só assim se explica que nesses dias ominosos as povoações fossem infestadas de vez em quando por alcateias de lobos famintos, tornando necessários os fojos de que falaremos adiante, e as montarias.
[…] Há coisa de 30 anos todos os lavradores, outono chegado, cortavam uma boa partida de urze para o inverno. Eram em geral 5 a 6 carros. Dela se serviam para ajudar a aquecer o forno e para acender o lume, como ótima acendalha que são depois de secas. Hoje tudo isso é uma velha lenda só existente na nossa memória entristecida.
A «razia» da urze.
O primeiro fator da destruição da serra foi a foice e o alvião. […]
Nos últimos anos, fizeram-se na Cabreira milhares de escudos só em carvão. Indivíduos sem eira nem beira, fazendo por dia 5 a 6 sacos de carvão, ganhavam 40 a 50 escudos em poucas horas: há meses, quando a direção dos serviços florestais cassou a licença a esses beneméritos, a saca dava a 10 a 12 escudos! Era uma mina para os «lazzaroni»! […]
As queimadas.
Nós hesitamos em crer que as queimadas sejam um ato consciente, gesto de alguém que esteja em seu juízo; e contudo, os antecedentes, o que se ouve, o que se diz por aí nos ajuntamentos, induz-nos a acreditar que as queimadas sejam deveras um ato criminoso de gente desvairada. […]
O ano de 1923 foi fertilíssimo nesse particular. Os inconscientes não só incendiaram a mata florestal, ainda incipiente, mas deram cabo de léguas e léguas de mato e urze na serra de Agra, Anjos e Campos. […]
Triste sintoma este das queimadas. Naturalmente não são vieirenses os que praticam tal crime.
A montaria. – Os fojos.
Em tempos idos a serra da Cabreira era uma floresta pejada de árvores, sobretudo de castanheiros, giestas enormes, e de urzes agigantadas. […]
Carvalhos havia muitos, e ainda hoje há alguns, mas de modestas proporções. Só no Tôco ainda há uma modesta amostra do que foi a nossa serra; e lá alguma coisa resta, porque o sítio é ingreme, e costuma dizer-se que o medo guarda a vinha.
As urzes chegavam mesmo até ao coração das freguesias, proporcionando lenha baratíssima e – o que mais custava – facilitando umas visitas em demasia amiudadas do incómodo e descarado lobo.
Nesses tempos ominosos, as alimárias da serra viviam, por assim dizer, paredes meias com o lavrador, e este via-se na dura contingência de se defender da importuna vizinhança.
Para opor resistência séria a esse inimigo feroz e sem escrúpulos, criaram nossos avós a armadilha clássica que batizaram com o sombrio nome de fojos e que o Camilo descreve assim:
«Uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo, onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e o focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o serrado».
O fojo na Cabreira não é bem como o descreve o ilustre e glorioso romancista. Formado de duas paredes altas, que se iam reduzindo e apertando gradualmente, a fim de encurralar o lobo num beco sem saída, terminava, lá ao fundo, numa espécie de castelo ou cisterna. […]
Os nossos antigos deliciavam-se com as montarias. Era um dia de festa rija e de grandes emoções. Havia em cada freguesia um capataz, encarregado de avisar os caçadores e de os guiar. […]
Havia sítios especiais, donde os capatazes, crismados com nome significativo de velas, davam sinal uns aos outros, advertindo da existência ou não existência do lobo. Esses sinais eram dados com o chapéu posto na boca do respetivo bacamarte” (O.C., pp.141-153).
Fotografias: Garrano, Cantelães / Serra da Cabreira, Ruivães.