Opinião de Filipe de Oliveira na Rádio Alto Ave

“NÃO ME DÓI NADA…”

O valor da música atravessa gerações, com marca nas pessoas centenárias. A música dá um empurrão no sorriso e relaxa nos momentos de aflição. Serve, também, de refúgio.

Palmira Simas Santos (nascida a 28 de Março de 1919) mergulhou na música, durante a infância, na Ilha do Pico. Acompanhou-a até à Ilha das Flores, onde viveu a juventude. É uma paixão que sobreviveu à agitação das ondas do oceano Atlântico, chegando a Vieira do Minho.

Por cá, a Palmirinha debita provérbios, como poucos, e eleva músicas tradicionais dos Açores, sempre com a preocupação de que transmitam a mensagem de “uma verdade pura”, como:

Ó Pico, rocha tão alta, / Donde o penedo caiu: / Ninguém diga o que não sabe, / Nem afirme o que não viu.

Num mundo rural, a vida na agricultura pode levar a mãos secas e gretadas, mas a sabedoria e a educação não sofrem abanões.

A Palmirinha fez-nos chegar preciosidades do seu avô Manuel João dos Santos, um autodidata que chegou a professor, oficial de registo e escrivão da Câmara Municipal das Lajes do Pico. Mais: o seu avô, numa ida ao Tribunal Judicial da Comarca de São Roque do Pico, disse ao juiz que era agricultor. Depois de o ouvir, o juiz duvidou da sua profissão. Com humildade, Manuel dos Santos disse: “Não menti, veja as minhas mãos. Sou agricultor”. Ao que o juiz respondeu: “Tem cultura de um letrado embora com mãos de agricultor”.

Os momentos marcantes das pessoas centenárias envolvem quase sempre o casamento. O amor de João de Araújo Costa (nascido a 30 de Setembro de 1920) pela sua mulher, Joaquina da Trindade Barroso, continua presente. O dia mais feliz foi quando casou; o mais triste quando a companheira de uma vida foi de encontro ao Pai. Um haitiano disse que, quando tudo se desmorona, o que resta é a cultura. João Costa vira-se para a poesia, mas a dor não pisa o pedal do travão.

Hoje em dia, João Costa acha que, “a vida é horrível porque parece que estamos num baile de máscaras”, no entanto, é compensada pelas amizades que sempre valorizou e que o fazem acreditar que é uma das lições mais importantes que aprendeu.

A vida de José António Gonçalves (nascido a 6 de Maio de 1919) foi dedicada a “cuidar dos filhos e a trabalhar na terra”, desejando, em tempos de pandemia, a maior sorte para os seus descendentes. Realmente, “as coisas boas acabam num instante, isto nunca mais acaba”.

Sabendo que há pessoas que, quando têm um martelo na mão, procuram logo os pregos, José Gonçalves lembra-se de um episódio que aconteceu numa eleição, onde a sua preferência não constava no boletim de voto que lhe foi entregue.

As viagens marcam as suas vidas. Conheceram outros países, com idas obrigatórias à praia. O mundo é grande, mas o seu conhecimento está a um pequeno passo, como a viagem a Itália que perdura na memória de José Gonçalves, não sendo abandonada com o avançar da idade.

E, agora, avança a sua fé. “Graças a Deus, fui feliz em tudo”. Vejo-lhe uma saúde de ferro que embeleza a vida, gerando, por vezes, um misto de sensações: “Não me dói nada… morre tudo… o tempo já é muito”.

Todos eles pedem que os jovens respeitem os mais velhos.

Ouvi os centenários vieirenses e enriqueci a minha vida. A missão passa por levar, até todos, pequenos pedaços da pessoa idosa. Com outros protagonistas, a minha vontade é continuar.

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